Apesar da mitologia das súcubos, bem como a de Lilith, já serem bastante disseminadas nas mídias de entretenimento, ainda assim persistem mais como elementos secundários de ambientações fantásticas mais amplas, ou como personagens coadjuvantes. Mas há notória exceção, ainda que também pouco conhecida: a série de TV canadense cujo nada inspirado título é LOST GIRL (2010-2016), durando 5 temporadas que totalizaram 77 episódios de 45 minutos.
A personagem principal, 'Bo Dennis', interpretada por Anna Silk (o nome da atriz é muito mais interessante que o nome da personagem) é explicitamente uma "súcubo", ainda que de uma categoria bastante diferente das retratações mais disseminadas, sendo fisicamente uma mulher comum com algumas peculiaridades e poderes especiais.
Mais interessante é que, se as súcubos desta série nada tem a ver com as sucúbias de As 4 Damas do Apocalipse, curiosamente, elas são bastante parecidas justamente com o conceito de Absórvitas, visto serem basicamente mulheres com a habilidade de sugar a vitalidade humana, podendo facilmente levá-los à morte, e precisando se controlar para fazê?lo de modo seguro. E sua abordagem varia desde uma abordagem quase "oral" onde a vitalidade é sugada diretamente pela boca, tal como se viu em LIFEFORCE, quanto por meio de contatos sexuais. Além de possuíram poderes de persuasão, controle mental e vigor físico sobrenatural, também podendo recuperar-se de ferimentos graves em poucos minutos sugando a vitalidade alheia.
Importante notar, porém, que o autor de As 4 Damas do Apocalipse jamais teve conhecimento da existência desta série até menos de um ano atrás, quando toda a concepção das absórvitas já estava completamente consolidada.
É irresistível comparar Lost Girl a duas outras muito bem sucedidas séries de temática similar: Buffy, a Caça-Vampiros (Buffy, The Vampire Slayer 1997-2003) e sua spinoff Angel (1999-2004), sendo na realidade até mais assemelhada a esta última devido a sua característica mais “policial”.
No caso, temos em plena contemporaneidade um mundo oculto repleto de seres sobrenaturais que, em geral, passa desapercebido pela maioria das pessoas, mas que uma vez desvendado se releva extremamente vasto e complexo, o que torna a ambientação bastante inverossímil. Pois diferente do que ocorre em As 4 Damas do Apocalipse, onde o sobrenatural é radicalmente afastado no mundo normal por se dar no restrito Super Mundo de sociedades secretas raríssimas, ou nos confins isolados da Terra, nestas três séries, e em muitas outras, esse mundo oculto está embrenhado nas próprias grandes cidades, praticamente com uma criatura sobrenatural “a cada esquina”, e infindáveis ações dessas entidades cujos efeitos, embora não as causas, são direta e amplamente percebidos pela população comum.
Analisando apenas os 13 episódios da Primeira Temporada, Lost Girl, criada por Michelle Lovretta, fica bem aquém do “Buffyverso” criado por Jossh Whedon, o que chega a ser evidente até mesmo nos efeitos especiais, o que só é minimizado devido a ela ser uma década mais nova e contar com novos recursos. A própria direção e edição dos episódios possuem uma narrativa rápida e bastante simplificada apesar de terminar retratando um universo razoavelmente complexo.
Basicamente, a série concebe os Fae, uma nome genérico para se referir a seres sobrenaturais, baseada numa concepção folclórica europeia mais antiga, que viria posteriormente a evoluir para faerie / fairy (“fadas”). Estes Fae incluem as súcubos, vampiros, lobisomens, gigantes de gelo nórdicos, tritãos, fúrias, duendes, e mais um sem número de criaturas distintas das mais variadas tradições, a maioria em forma humana e versões bem inusitadas. Se dividem entre os Fae das Trevas e os Fae da Luz, embora esse alinhamento não seja tão maniqueísta quanto o nome sugere. E grande parte da trama decorre justamente da recusa da personagem principal em se juntar a uma das duas facções, permanecendo como uma Fae independente.
O autor de As 4 Damas do Apocalipse confessa que se esforçou para terminar ao menos essa primeira temporada antes de escrever sobre a série, visto ser praticamente uma obrigação uma vez que envolve tema tão afinado. Mas ao final, apesar dos percalços que envolvem elementos bastante implausíveis além de uma certa fragilidade na mistura dos elementos dramáticos com os elementos cômicos, a séria acaba conquistando, como é comum, pelo carisma dos personagens, para o qual os atores cumprem papel crucial.
Ajuda bastante a beleza das atrizes, pois além de Anna Silk no papel da súcubo principal, sua companheira, Kenzie, é interpretada pela atriz de origem eslava Ksenia Solo, e apesar de sua personagen ser uma humana comum, os olhos da atriz são de um azul quase “sobrenatural” que custa crer que sejam, e de fato são, naturais! Kenzie é a principal responsável tanto pelo “alívio cômico”, frequentemente exagerado, quanto executa regularmente o papel de donzela em perigo, embora não raro, em rasgos de perspicácia, seja ela quem resolva algumas das tramas episódicas. Mas além de frequentemente a personagem ter comportamentos demasiado irresponsáveis num mundo tão perigoso, talvez fosse visualmente mais interessante se ela, que frequentemente muda a cor do cabelo, passasse mais tempo loira, a fim de causar um contraste com a perpetuamente morena Bo.
Outra personagem regular, Laurie, interpretada pela loira Zoe Palmer, também chama atenção como uma humana médica dos Fae, que tem um interesse em Bo que começa científico, mas se torna romântico. E a maioria dos episódios traz novas beldades ocasionais que não raro se envolvem em cenas um tanto sensuais com não raro lesbianismo.
Mas Bo, sendo bissexual, tem como interesse romântico maior outro dos personagens fixos, o policial lobisomem Dyson, interpretado por Kris Holden-Ried, também um personagem cativante, e do elenco masculino destaca-se também Trick, interpretado pelo ator Rick Howland, que mede apenas 1,37m de estatura, embora não sofra das formas mais comuns de nanismo. Evidentemente, seu papel é de uma criatura mística bastante intrigante, poderosa, mas simpática, sendo o principal aliado dos protagonistas. Por fim, dos seis personagens fixos da série, como se pode ver na imagem, o tritão Hale, interpretado por K.C.Hollins, completa o time como o policial parceiro de Dyson, mas traz um ponto baixo que é o fato de quase não utilizar seu formidável poder e nem sequer explorar sua natureza sobrenatural.
Destaque também para a voz inacreditavelmente máscula, misteriosa e fascinante do ator Clé Bennett, que interpreta Ash, o temido líder dos Fae da Luz. Embora apareça numa minoria de episódios, o simples timbre de sua voz é capaz de criar um imediato clima sobrenatural! Não é, porém, uma voz totalmente natural, pois embora ele possua sim uma voz grave e bem empostada, ele a modula de forma mais exótica para o personagem.
O ótimo elenco, então, é o ponto alto da série, além do mistério da origem da protagonista, que se arrasta ao longo de toda a primeira temporada tendo uma resolução bastante interessante. Infelizmente, a temporada não tem um fechamento, pois apesar do clímax, a trama passa para a segunda temporada como se esta fosse apenas mais um episódio, dificultando uma análise mais fechada.
Por fim, é interessante fazer uma comparação da concepção das súcubos de Lost Girl com as absórvitas de As 4 Damas do Apocalipse, visto que praticamente em nada se assemelham às sucúbias desta além daquilo que já se assemelham às absórvitas. Lembrando que aqui, embora exista uma distinção entre ‘súcubo’ e ‘sucúbia’ em As 4 Damas, usarei ‘súcubos’ para me referir somente às personagens “humanas” de Lost Girl, e ‘sucúbias’ para as demônias de As 4 Damas, bem como ‘absórvitas’ para as humanas desta mesma saga que possuem alguns poderes das sucúbias.
Como já dito, o único ponto em comum com a mitologia das súcubos é que as entidades de Lost Girl (tanto Bo quanto outra súcubo que aparece mais ao final da temporada) também sugam vitalidade, mas até o modo como isso ocorre varia.
- As absórvitas são capazes de sugar vitalidade de muitas formas distintas, desde um simples toque, ou um intenso contato corpóreo, mas a depender do nível de desenvolvimento, mesmo a distância. De início, apenas uns poucos metros, mas à medida que seu poder evolui, podendo alcançar dezenas de metros, e com pessoas em especial, seus consortes e irmãs de rede, podem compartilhar vitalidade mesmo a milhares de quilômetros, embora de forma mútua e interdependente. Ao menos na primeira temporada, nada sugere que as personagens de Lost Girl tenham capacidade semelhante, embora sua capacidade de expanda nas temporadas posteriores;
- As súcubos de Lost Girl, precisam de abordagem muito mais próxima e direta para sugar vitalidade, preferencialmente pela boca, mas possuem uma inegável vantagem, que é poderem usar seus poderes de dia, o que é impossível para as absórvitas, que só podem fazê-lo muito longe da interferência do Sol. Vale lembrar, que as sucúbias da obra também são absórvitas, mas devido a sua anatomia demônica raramente usam essa habilidade, podendo contar com seus vastos recursos fisiológicos;
- Em Lost Girl as súcubos possuem poderes de sedução bem mais invasivos, podendo, num simples toque, praticamente controlar uma pessoa, homem ou mulher. As absórvitas não possuem qualquer recurso similar (a Linguagem Primordial não é habilidade absórvita). As sucúbias, por outro lado, tem vários recursos físicos, como feromônios e drogas inoculáveis capazes não só de seduzir mas praticamente controlar exclusivamente homens, mas as absórvitas contam apenas com sua beleza e sensualidade para tal;
- De dia, as absórvitas são mulheres comuns, ainda que com capacidades físicas e mentais otimizadas, à noite, sua capacidade física se exponencia ainda mais, e mesmo não tendo exatamente super força, sua capacidade de recuperação é sobrehumana, podendo resistir e se recuperar rapidamente de ferimentos que incapacitariam qualquer pessoa normal. As súcubos de Lost Girl não diferenciam o dia da noite, e contam com força e resistência sobre humana constante;
- Lost Girl utiliza explicitamente o conceito oriental de “Chi” para se referir àquilo que em As 4 Damas é chamado de Vitalidade, mas nesta última suas aplicações são muito mais amplas que a mera manutenção da vida, podendo ser convertida, pelas absórvitas mais poderosas, em eletricidade, as permitindo até mesmo disparar raios, e nos casos mais extremos, criar um campo elétrico defensivo em torno do corpo e viabilizar inclusive levitação;
- Por fim, embora em Lost Girl exista também a contrapartida dos Íncubos, ambos não parecem demonstrar grande preferência entre homens e mulheres no que se refere absorver o Chi, enquanto as súcubos e os íncubos em As 4 Damas são exclusivamente focados no sexo oposto humano, ao passo que as absórvitas, embora também possam sugar vitalidade de ambos os sexos, também manifestam uma facilidade maior para sugar energia de homens que de mulheres. Finalmente, é bom lembrar que existem também absórvitas homens, mas em proporção em geral inferior a 10%.
Apesar de uma certa precariedade, Lost Girl é uma raridade que merece ser observada, não só por tocar num tema tão pouco explorado. (Dentre as infindáveis criaturas que se vê no Buffyverso, não há súcubos.) Também por refletir uma manifestação clara do arquétipo Lilith, retratando uma personagem sexualmente ativa e expansiva, mas, como diz explicitamente a autora “...sem cair em estereótipos básicos ou exploração misógina (ou misândrica)...” e que não define, por si, sua personalidade. Bo tem relações hétero, homo, e sobretudo relações humanas não sexuais, de modo a, mais uma vez nas palavras da autora “...desbancar o pânico clichê gay de que pessoas bissexuais sexualizam a todos e são incapazes de uma amizade platônica.”
Evidentemente, o fato da protagonista ser uma súcubo é o que de fato viabiliza essa abordagem, em contraste com o que vemos no Buffyverse ou outras séries que, apesar de terem sido muito criticadas por conservadores, são frequentemente, são marcadas por um surpreendente moralismo subjacente.
Como também afirma o autor de As 4 Damas do Apocalipse, apelar a essa visão sobrenatural e mítica da sexualidade é uma ótima forma de abordar um tema tão sensível de modo diferenciado, sem incorrer em alguma forma de repressão sexual, nem numa sexualidade descontrolada.
É breve, mas traz informações preciosas sobre essa mitologia profana e suas implicações simbólicas, ainda que a maioria bastante diferentes da concepção literária presente em As 4 Damas do Apocalipse disponível por R$ 4,00 em versão e-book www.amazon.com.br/As-Damas-Apocalipse-Agrat-Mahalat-ebook/dp/B093LGD8YF